quinta-feira, setembro 23, 2010

O dia em que não morri, porque os tempos eram outros...

Curioso...

hoje tomei conhecimento através do Facebook e do blog Dias Úteis, uma infeliz (porém feliz...) história de um desencontro no primeiro dia de escola. um entrada numa carrinha errada e estava armada a confusão. Podem ler aqui neste link... aconselho mesmo a que leiam primeiro, pois ajuda a enquadrar o meu texto abaixo...

Felizmente, a filha do autor acabou por aparecer e de saúde, num ATL errado ( incrivel...) e a história acabou bem... e o ponto de vista é do pai que perde a filha, ainda que por 2 horas...

Uff... sou pai de duas meninas de 7 e 11 anos e nem quero imaginar o que ele sentiu...

Porém esta história trouxe-me à memória uma outra história que se passou comigo, no longínquo ano de 1982... Convido-vos a lerem esta minha história e poderem ter um pouco a visão do "outro lado da barricada" (o lado de quem se perdeu...), com a devida distância de quase 30 anos...

Enjoy...

Um (in)feliz (des)engano

Durante o período de escola primária, segui um percurso que se pode chamar como normal com características próprias mas sempre dentro do que se pode querer para uma criança entre os 7 e os 10 anos: bom aluno, algo distraído, reservado mas gradualmente a sair debaixo das saias da mãe e descobrir um mundo inteiro que estava à minha espera.

Vivia então num dos suburbios de Lisboa, Mem-Martins, que em 1982 ainda uma pacata aldeia em que toda a gente conhecia quase toda a gente.

Quando uma mãe (ou um pai…) é muito protectora podemos correr o risco de se criar uma criança que, logo que se veja livre dos apertos e das limitações que lhe são impostas, saia a correr porta fora e se atire de cabeça para tudo o que seja novo e desconhecido, em função da curiosidade natural que tem uma criança. Muitas destas crianças tornam-se rebeldes, rodeiam-se de más companhias e são como uma espécie de íman para sarilhos…

Seguramente que soube sair suavemente da minha “prisão dourada” e ao longo da minha escola primária fui “arrebitando”.

Com o facto de os meus pais estarem a trabalhar e de eu apenas ter escola de manhã, comecei a ter liberdade para me aventurar com os meus amigos e começar a sair da “concha” onde tinha estado tanto tempo.
E creio que esta saída progressiva desta concha me foi claramente benéfica, pois quando terminei a escola primária, que ficava praticamente no fundo da rua, fui colocado na Escola Preparatória Visconde Jeromenha, onde hoje é uma selva de betão chamada Tapada das Mercês, mas que antes era uma real Tapada, com um pinhal gigante (sim, sem prédios...).

A E.P. Visconde Jeromenha era assim uma daquelas escolas novas do novo regime, com inúmeros pavilhões, polidesportivo, campo de jogos e… ficava no meio de uma mata, sem nada por perto!
Para ir para lá, o acesso era feito em camionetas da antiga Rodoviária Nacional (aquelas brancas e cor de laranja…), e havia três linhas: Rio de Mouro, Mira Sintra e São Carlos. Ora como eu morava em São Carlos, Mem-Martins, o que tinha de fazer era apanhar uma camioneta cheia de miúdos e seguir para uma escola com ainda mais miúdos, com mais de 120 salas de aula e 9 professores para cada turma, ao contrário da minha pacata escola primária, com duas salinhas de aula e 1 professora que sempre acompanhou a minha escolaridade até então.

A minha mãe, obviamente, encheu-me a cabeça de monstros e problemas e de bandidos… uff… mas a custo, lá me foi comprar o passe e lembro-me perfeitamente do meu primeiro dia de escola.
De manhã, lá estava eu na paragem da camioneta, com mais um monte de miúdos, e quando vi que conhecia alguns deles, fiquei mais tranquilo pois pelo menos não estava completamente sozinho. Entrei para a camioneta e como era das primeiras paragens ainda dava para arranjar lugar sentado, mas ao longo do percurso, a coisa foi enchendo, enchendo, que comecei a ficar preocupado com a quantidade de gente que ali estava e que eu nem fazia ideia quem eram.
Cheguei à escola e fiquei completamente do tamanho de uma ervilha: eram milhares de crianças de todas as cores, formas e feitios e eu não fazia a menor ideia quem eram, como se chamavam nem como eu havia de me integrar. Encontrei com grande dificuldade a sala de aula onde tive a minha apresentação com a directora de turma. Era a minha professora de inglês o que me deixou um pouco mais tranquilo porque era uma disciplina que eu ansiava muito por ter. Explicou-nos como as coisas se processavam dentro da escola, um pequeno mapa com os números das salas e as suas localizações (muito útil…) e sobretudo era uma pessoa simpática. Até mais simpática que a minha professora da primária… e bem mais nova!

Nesse dia tivemos mais 4 aulas de apresentação e as coisas foram correndo na medida do possível. Os intervalos de hora a hora eram meio estranhos pois não sabia bem o que fazer nem conhecia ninguém na minha turma. Sentia-me meio deslocado e do género de quando entramos num elevador com outra a pessoa e não sabemos bem o que dizer… Aqueles silêncios desconfortáveis…

As aulas acabaram pelo meio-dia e nesse dia não tinha aulas de tarde pelo que agora restava-me voltar para casa e esperar que o percurso inverso fosse tranquilo e sem percalços.
A paragem das camionetas era no largo em frente à escola e alinhavam-se em 3 paragens. Quando cheguei vi duas camionetas completamente cheias e uma delas ainda com lugar para sentar. Por isso, não hesitei e, entrei e sentei-me. O motorista chegou e em pouco tempo estávamos a andar. No entanto, achei algo estranho o facto de não estar a reconhecer o caminho, mas como nunca tinha necessidade de estar atento a caminhos ou estradas antes, admiti a possibilidade de estar a fazer um percurso diferente, mas com o destino que pretendia.
No entanto, a camioneta chegou a uma paragem onde saiu toda a gente e o motorista, ao ver-me sentado ainda, disse-me que era a última e que tinha de sair.

Fiquei em pânico, quase paralisado e subiu-me todo o sangue à cabeça.

Saí da camioneta e não fazia a menor ideia onde estava! Foi então que descobri que tinha apanhado a camioneta errada!

Olhei em volta e estava completamente perdido, num sitio chamado Rio de Mouro, a mais de 10 kms da minha casa e não fazia a menor ideia de como sair dali.

Pela primeira vez na minha vida estava dependente apenas de mim e das decisões que tinha de tomar. E Foi nesse preciso momento da minha vida que estava numa encruzilhada e tive de escolher para que lado havia de seguir.
Voltei à paragem onde estava a camioneta e perguntei a um motorista como fazia para ir para Mem-martins e ele disse que havia uma camioneta que saía de Rio de Mouro para Mem-Martins, de meia em meia hora.

OK! Estava safo…

Esperei pela camioneta, vi que dizia “Mem-Martins”, e ao entrar mostrei o meu passe e o motorista mas aí ele disse-me que aquele passe não servia para utilizar aquela camioneta… Era um passe escolar e ainda por cima não era para aquele percurso.

Uff… outra vez perdido… estava a desesperar…

Enchi o peito de ar e do fundo da minha até então timidez, perguntei-lhe então como podia fazer pois o queria era ir para Mem-Martins, pois tinha-me enganado na camioneta quando saí da escola e estava a ficar aflito…
Devo ter sido bastante convincente pois o senhor foi bastante simpático e foi comigo até à paragem da camioneta que voltava para a escola. Falou com o colega e disse-lhe para que me levasse de volta à Escola e que me deixasse usar o meu passe (que até não dava para aquele percurso…) e que quando lá chegasse me dissesse qual era a camioneta certa para ir para Mem-Martins.
Assim foi, voltei à escola, apanhei a camioneta certa e reconheci o percurso, e em 25 minutos estava na paragem ao pé de minha casa. Corri para casa, com “borboletas na barriga” e feliz por ter ultrapassado aquela dificuldade. A aventura tinha acabado, mas na realidade, outra mais grandiosa tinha começado para mim: o facto de passar a encarar a minha vida de uma forma muito mais abrangente e perceber que há mais mundo para além do nosso pequeno bairro...

No dia seguinte, nada mais me pareceu tão difícil, nem a escola, nem as viagens, nem os colegas, as salas, os professores... porque tinha passado por uma experiência no dia anterior que, não obstante as dificuldades, o medo que senti, o pânico, transmitiu-me uma coisa que eu nem sabia que tinha: Confiança. E uma pessoa confiante é capaz de fazer qualquer coisa… mesmo uma criança de 10 anos.

E em poucos dias fiz novos amigos, integrei-me e fiquei por dois anos naquela escola, sem mais enganos de camionetas. Outros enganos vieram, é verdade, mas de transportes, nunca mais me enganei.