domingo, janeiro 18, 2009

José Carlos Ary dos Santos - Estrela da Tarde

Passam hoje 25 anos da morte de um dos mais carismáticos poetas de Abril que com a força das suas palavras transmitia uma força como que reprimida a quem, ainda hoje, ouve ou lê os seus poemas.

José Carlos Ary dos Santos, construiu um conjunto de poemas para muitas canções de Festival da Canção, mas foi a sua mensagem e a forma subliminar como escrevia que a mim me marcou.

Poemas como "O Homem da Cidade" ou "Estrela da Tarde", foram marcos e, não obstante eu quase achar que "desmembrar" poemas destes seja quase um crime, queria deixar-vos uma análise pessoal sobre a fonética do poema "Estrela da Tarde".

A forma como está escrito e a maneira como Ary dos Santos manobra as palavras em função das situações, é simplesmente delicioso.

Fica aqui o poema na íntegra, leiam-no despreocupadamente e depois leiam a minha análise:


Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!



Análise:

Se repararem, a primeira parte do poema fala-nos da "Tarde", que reflecte o prelúdio do final, que pode ser da vida ou de um objectivo a alcançar. Essa Tarde transmite-nos a força, a ansiedade, a fúria e a vontade de "ter" ou de "viver", e para realçar esse sentimento o poeta utiliza a forma fonética dos érres, como que um gritar oprimido, uma ansiedade incontrolável, o desejo sem ponderáveis. Vou apenas extrair as palavras-chave para poderem constatar:

Tarde, esperava, tardavas, entardecia, tarde, tardando, mordia, tardia, tardámos, ardendo, morria, tarde, para haver.

Reflecte assim a "Tarde" ansiosa que antecede a "Noite" mais tranquila, o atingir dos objectivos, o adquirir, o obter, o chegar...

O poema tem uma passagem anterior à "Noite" que é a "Estrela da Tarde", aquela que chega quando ainda não é noite, no lusco fusco, o ponto de viragem. O Poeta faz neste ponto a passagem da "Tarde" para a "Noite", dos sons érre para os sons ésse.

Amor, tarde, corpo, guarde - érres

Certeza, Se tu és, se és, tristeza - ésses

Depois, na segunda parte do poema, vem a "Noite" que corresponde ao atingir do objectivo que vai terminar com a ansiedade, e com ele vem a calma, a tranquilidade e o descanso. Para esse efeito o Poeta utiliza desta vez a fonética mais suave dos sons ésses, como que um acalmar da fúria, um sussurro. Vou apenas extrair as palavras-chave para poderem avaliar:

Todas, noites, adormeceram, nocturnos, silêncios, aromas, beijos, encheram, nossos, dois, corpos, cansados, adormeceram, estrada, festa, fizeram, noites, só, nos, aconteceram, todas, precederam, mais, daqueles

No final desta segunda parte, o Poeta retoma a ansiedade com a perspectiva do abandono e o voltar da ansiedade, com um encadear do som ésse e com uma nova e única volta ao som érre, como é possível de ver nas duas últimas passagens, terminando a "Noite" de ésses com um forte érre de "morreram":

Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

E para o final, deixa o clímax da confusão dos sentimentos com a fúria da ausência numa outra "Tarde" que antecederá a calma e a suavidade de uma nova "Noite", misturada de forma sublime. Eis aqui primeiro os érres da "Tarde":

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto

Para iniciar o final, volta novamente os ésses de uma outra "Noite"

Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

E a última frase do poema, a chave de ouro, é o mesclar dos sons, culminando o clímax com uma esperança de voltar a "ter", sabendo no entanto que terá que voltar a passar pelo mesmo caminho, "Tarde", "Estrela da Tarde" e "Noite":


Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


Esta é a minha análise "cientifica" deste magnifico poema que vos deixo o conselho de relerem agora o poema novamente, para que possam apurar o que refiro nesta minha análise.

Leia-no captando sobretudo a beleza latente nas sua palavras e nos sentidos que o poeta terá querido dar aos escrever, incorporando com os nossos próprios sentimentos e interpretações. Essa é a verdadeira essência da poesia.

Cabe-me apenas concluír dizendo que o que aqui escrevi é a minha análise e é mesmo só minha e muito própria, pois pelo menos nunca ouvi ou li nada neste sentido... Nem sequer sei, ou virei a saber, se esta era mesmo a idéia do poeta ao escrever este poema ou se a caneta o "guiou" neste caminho... mas quando falamos de Ary dos Santos, há que pensar que nada era feito ao acaso... e são muitas coincidências...

4 comentários:

gracarlilas disse...

Obrigada pelo lindo poema e pela excelente análise literária.

Emocionante ouvir o poema na voz de Carlos do Carmo.

Abraços

Graça Ribeiro - Brasil

Moinante disse...

Obrigado Graça,

Se bem que a minha análise literária vale o que vale... se calhar, Ary dos Santos está às voltas no caixão pelas barbaridades que aqui escrevi...

ou então, não... quem sabe, né?

bjs

Moinantes

NunoRamada disse...

Poema que já conheço há anos, mas há uma coisa que ainda não sei: qual foi o ano da criação desse poema? Talvez não me saiba responder, mas...fica a tentativa.
Obrigado desde já

marlene disse...

Boa noite, achei a analise excelente, será que me poderias ajudar a fazer uma analise literária da musica inquietação e/ou da musica Vou sair para comprar cigarros de JP Simoes?
Ou se alguém puder...
precisava de uma resposta urgente, pf para o meu e-mail:

marlrodrigues-@hotmail.com